Aposentos de Perséfone

- Perséfone, querida, se não queria que a visse comer, era apenas me dizer... faria com todo o prazer. - Hades abriu aquele sorriso irritante, enquanto aproximava-se de onde ela havia caído com a ambrosia. Cruzou os braços, fazendo um biquinho, no seu mais digno sinal de protesto. Quem ele pensava que era para tratá-la assim?

Queria lhe perguntar sobre sua mãe. O porque de ter voltado tão rápido. Se poderia sair... Tinha uma infinidade de perguntas que queria fazer a respeito do seu sumiço, mas todas lhe falharam quando Hades ajoelhou-se perto dela, analisando a sujeira que tinha feito com a ambrosia. A proximidade dele era sempre algo perturbadora. Como não conseguia lê-lo, nunca sabia qual seria sua próxima atitude ou explosão de humor. Simplesmente, não poderia prevê-lo.

- Melhor limpá-la antes de levá-la de volta para a cama, pequena. - comentou, aproximando-se do rosto dela. Limpar-se? Voltou a encarar suas roupas. Caramba! Realmente precisava de um lenço. - Não quer dormir toda suja, certo? - perguntou calmamente, com um sorriso de lado. Perséfone franziu o cenho. Que pergunta idiota. Quem gostaria de dormir sujo? E porque ele usava aquele tom cúmplice para algo tão trivial? Quando levantou os olhos de suas roupas, Hades estava a apenas um palmo de distancia e aproximando-se cada vez mais. Sentiu o rosto corar em uma velocidade vertiginosa. E-e-e-e-ele não deveria estar tão próximo, c-c-certo? Talvez devesse tentar verbalizar esse pensamento, se seu corpo não tivesse saído de ferias e a deixado presso numa situação constrangedora como essa. Até tentou falar, mas apenas abriu a boca por diversas vezes, sem emitir qualquer som. Ele se inclinou para frente, chegando a uma pequena porção de Ambrosia que tinha caído em seu rosto, próximo dos lábios. Abraçando-a, para deixá-la imobilizada, passou a ponta da língua sobre sua pele. E Perséfone teve que se controlar para não ter uma parada cardíaca.

- Ha-Ha-Hades...o-o-oque vo-você pensa...q-que está fa-fazendo? - Oh Deuses, ele estava tão próximo que era embriagante, sua voz sussurrada, seus movimentos precisos, sua respiração tão próxima fazia seu corpo reagir de formas estranhas. E não tinha ideia de como reagir. Sentiu a pele se erriçar ao mais simples toque dele e o coração perder o compasso das batidas conforme ele sussurrava a seu ouvido. Seu rosto estava quente e seu joelhos, definitivamente tinham desistido de funcionar.

Quando afastou-se, seus olhos brilhavam ainda mais claros que antes, suas iris, brancas com o contorno azul, refletiam algum sentimento que ela não conseguia identificar. Não era nada que já tivesse visto e isso lhe assustava um pouco. Devagar, ele pegou com suavidade seu braço que, antes, segurava a colher e o aproximou do próprio rosto, sem despregar os olhos de suas feições.

O que ele faria? Não entendia onde queria chegar...

Com lentidão, passou a ponta da língua dedo por dedo, limpando calmamente a ambrosia de sua pele. E Perséfone se viu paralisada, hipnotizada pela cena. Aquilo não parecia certo, devia desviar os olhos, ou empurrá-lo para longe, mas tudo que fez foi ficar parada, o observando, intrigada com a sensação estranha que lhe causava observar a língua dele deslizar demoradamente por sua pele. Sentiu seu estomago dar uma cambalhota e sua temperatura deveria estar, pelo menos, uns cinco graus mais alta. Ou era como se sentia. Não entendia porque estava constrangida, poderia ser visto como um ato inocente, protetor, paternal, mas vindo dele, tudo tinha uma conotação sexual implícita. E isso a deixava agitada. Ele deslizou as mãos por seu braço, retirando calmamente a manga do lugar.

-Ha-Hades...- sua respiração estava entrecortada, e não entendia o porque, talvez pelas más condições que estava passando, mas respirar estava se tornando uma atividade muito difícil naquele momento.

- Hum, parece que terminei. - comentou, enquanto olhava para o outro braço, repousado frouxamente ao lado de seu corpo.- Vai precisar trocar de roupa. - com um movimento de mão, uma vestimenta negra e etérea tão parecida com a dele foi conjurada. - Fique a vontade para se trocar. Eu terei de levar a comida de volta, pois vejo que já a está desperdiçando, ao invés de comendo...

Levantou-se, deixando a vestimenta sobre a cama e pegando a bandeja. Pouco depois, quando desapareceu num redemoinho de sombras, Perséfone ainda permaneceu no chão, tentando recuperar o folego e entender o que tinha acabado de acontecer.

O que diabos ele tinha na cabeça?

Quando seus neurônios voltaram a ativa, devagar e um por um, toda a cena pareceu constrangedora demais para que ela suportasse calada. Teve vontade de gritar, espernear e choramingar como a menina mimada que era. Pensou em um monte de ofensas que poderia ter proferido contra ele, naquele momento. Mas era tarde demais para que as fizesse. E isso apenas a deixou ainda mais frustrada.

Se colocou em pé, num salto, corada como nunca esteve e revoltada como nunca imaginou que poderia ficar.

COMO ELE OUSAVA BRINCAR ASSIM COM ELA??

Bufando de raiva, pegou a roupa que ele tinha deixado em cima da cama, amassando entre os dedos sem nenhuma delicadeza e se encaminhou para o banheiro anexo ao quarto. Tomaria um banho demorado, para se livrar do cheiro dele, já que parecia estar a impregnada em sua pele. Se sentia suja por ele ter feito coisas tão pervertidas com ela. E ainda mais, por não ter conseguido repeli-lo a tempo. Corava incrivelmente apenas por lembrar como era absurda toda aquela cena.

Jogou o vestido em cima da pia sem qualquer cuidado.

E afinal, quem gostaria de um vestido tão fúnebre? Preto? Nem de longe era sua cor favorita...

Resmungando, mau humorada, se despiu e entrou no banho.

Precisaria de um longo banho para se livrar disso tudo, desse dia todo....só não sabia o que precisava fazer para se livrar de Hades, mas era só uma questão de tempo até descobrir...

Após sair do quarto de Perséfone, comeu alguma coisa... ou melhor seria, a mesma comida, já que permanecia intocada. Sua mente viajou, pensando o motivo daquilo...

Seria possível alguém ter, afinal, falado dos perigos de meu reino, tão distante da perfeita e linda vida que ela vivia?, franziu a testa, enquanto comia. Se fosse desse jeito, queria dizer que quando ela pusesse algo na boca, por vontade de própria... estaria aceitando-o, indiretamente?

Continuou de olhos fechados, comendo sem pressa alguma. Não, se ela comesse, seria devido a fome que estava lhe provocando. Você está a matando de fome, sussurrou a fraca voz de Deméter em sua mente. Perséfone precisa comer, ela precisa sair de lá, senão você a matará, disse a contundente voz de Zeus, ecoando por sua mente logo em seguida.

Largou os talheres com raiva. Não matarei Perséfone! Ela comerá. Ela acabará fazendo-o, uma hora ou outra, protestou sua mente contra as vozes que não paravam de ecoar e lhe atormentar. O tilintar estrondoso dos talheres contra o prato reverberaram pelas paredes ensurdecedoramente. Tinha muito mais o que fazer, fazia pouco tempo que tinha decidido construir um aposento especialmente para Perséfone, só que não fazia ideia de como resolveria seu problema... teria que haver um jeito, mas qual? Não tinha chegado na solução.

Desmaterializou-se até o quarto dela e, no entanto, não a encontrou.

- Perséfone? - chamou com a voz baixa, quase falha. Por alguns momentos perturbadores, não conseguiu raciocinar. Tinha lhe escapado por entre os dedos.

Logo retornou a racionalidade, quando ouviu um praguejo alto, vindo do banheiro. Não conteve um suspirar aliviado e seu coração acalmou-se quase instantaneamente, enquanto colocava sua mão sobre o local... mas o que era aquele aperto horrível de uns instantes antes? Fora tão intenso, nunca sentira algo parecido na vida.

Não era o momento de cogitações, iria esperá-la de seu quarto, até que ela saísse do banho para ajeitá-la na cama, como andara a fazer todas as noites desde o castigo. Desde aquela noite em que tinha colocado-a para dormir, sentira uma necessidade intensa de olhar suas expressões serenas. Observar seu frágil corpo repousar no leito, sem medo... sem preocupações... sem defensivas. Entregue.

Era uma visão tão bela.

Novamente, perdendo-se em pensamentos! Desmaterializou-se para o quarto e lá esperou.

Saiu do banho já vestida com aquele estranho manto negro. Não conseguia se recordar da ultima vez que tinha vestido uma cor tão escura, gostava das cores claras, vivas e alegres. De preferencia com estampas, as de flores eram suas favoritas ou rendas...ah...rendas, como gostava desse trabalho delicado das artesas...

Com a toalha ainda em cima dos ombros, esfregando os cabelos com as duas mãos, foi até a frente de um grande espelho que tinha em um do cantos do quarto e olhou sua imagem refletida. Estava magra demais, seus olhos fundos, pele e cabelo sem brilho alguns de seus ossos começavam a aparecer entre as roupas. E o pior de tudo é que o tom preto lhe deixava ainda mais magra e doente.

Suspirou triste.

Estava fraca, doente e temia que não voltaria mais para o Olimpo, não voltaria a ver seus irmãos e pais. Se não fosse pela maldição de Hades para lhe prender ali, seria por não comer nada e acabar definhando até a morte. E que morte ridícula para uma Deusa: inanição. Não que ela acreditasse que poderia ter uma morte gloriosa em batalha ou algo assim, sabia que era inútil quando se tratava de guerrear, mas não esperava morrer de forma tão...tão....humana.

Caminhou até a cama, exausta por um simples banho, e se deitou sobre as cobertas. Não precisava se dar ao trabalho de se cobrir, porque sabia que Hades viria fazer isso. Poderia economizar suas parcas energias quanto a isso, porque cada vez mais parecia impossível fazer coisas simples como se levantar ou se cobrir.

Hades tinha vindo todas as noites, desde que tinha sido presa para lhe cobrir, como tinha vindo em todas as refeições para tentar lhe alimentar. Ele era protetor, sistemático e pontual. Não tinha pulado uma noite ou refeição sequer. E isso tanto a deixava doente, como, tinha que admitir, levemente feliz por ver outra coisa que não fosse em seus sonhos. Além de lhe ajudar a marcar o tempo de prisão, já que tanto as noites quanto os dias eram negros por ali, precisava da rotina para notar o tempo passando. Com essa noite, seriam sete dias completos. Sete dias sem qualquer comida ou bebida. Sete dias de tortura. Não conseguia imaginar quanto tempo mais aguentaria...

Esperou algum tempo, até que tivesse certeza de que ela, ao menos, estava trocada. Quando materializou-se no quarto, ela trajava as roupas que tinha lhe entregue e permanecia largada na cama, os olhos já fechados e entregue ao cansaço. Não podia saber se estava dormindo ou acordada, mas isso não fazia diferença.

Aquele era o único momento do dia que ela parecia agradecer sua presença. Aproximou-se do leito e, antes de mais nada, retirou as faixas de seus pés, analisando metodicamente a cicatrização deles e saber como estavam. Por fim, tornou a enfaixá-los com a mesma precisão e cuidado de antes. Ergueu os olhos para o corpo inerte, sem resistência.

Sentou-se ao lado dele, analisando-a, passando as mãos pelo rosto muito magro e com marcas feias pela falta de alimentação.

Novamente as frases cruéis de Zeus e Deméter ecoaram em sua mente. Fechou o punho no ar, decidido a ignorá-los. Pegou as cobertas, ajeitando-as sobre o corpo magro e cada vez mais frágil. E ali permaneceu, analisando-a, por um longo tempo.

Porém, uma hora levantou-se para ir ao próprio quarto e deixá-la sozinha. Apagou as luzes e se foi para o próprio quarto. O dia seguinte seria um longo dia.

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Com esmero, depois de recolher o Príncipe Negro, depositou-o no invólucro de vidro retangular encantado para garantir que sua beleza não se perdesse através dos séculos. Depois disso, embrulhou metodicamente em um papel de presente com as cores preferidas dela. Procurara com afinco pelas lojas alguns dias antes e teve de guardá-lo até encontrar a flor perfeita para lhe entregar.

Tentou colocar uma fita, mas não conseguia ajeitá-la, parecia tão estranho e acabou amassando tudo ao tentar produzir um laço. Era feio, mesmo, não precisava daquilo, pensou com uma mistura de frustração e ira por não ter conseguido produzir o laço como queria.

Novamente foi tentar lhe dar comida, mas daquela vez aproveitaria para lhe dar o presente. Sentia-se um pouco desconfortável, novamente aquela sensação de suspense com medo. Não estava gostando daquilo, nem um pouco.

Apareceu em seu quarto carregando a comida na bandeja, como sempre e aproximou-se do leito.

Ela dormia. Novamente admirou-a, mas ela não demonstrava nenhuma serenidade. Seu rosto se contorcia em dores e podia ver que chorava.

- Artie... Dio... Apollo... Mamãe... - ela murmurava angustiada em seu sono - Estou... aqui...

Sentou-se em sua cama, como sempre fazia, observando sua angústia inconsciente. Suspirou, deixando a bandeja sobre o criado mudo para ter liberdade para acordá-la. Esticou a mão até seu rosto e começou a limpar as marcas de sua tristeza, sentindo uma dor aguda ao verificar com as próprias mãos a subnutrição que se acentuava, cada dia mais.

É tão difícil de me aceitar, Perséfone? Só, por pelo menos, alguns dias no ano?, perguntou-se com certa tristeza. Se a levase para a superfície, ela iria embora para nunca mais voltar. Não suportaria isso. Não, era preferível perdê-la, ali, do que pra qualquer outro.

Curvou-se sobre seu corpo, sem retirar as mãos de seu rosto, e sussurrou:

- Hora de comer, Perséfone... - novamente, a mesma frase.

Era tudo uma rotina constante e sem nenhum diferencial, retirando algumas falas. Porém, se sentia mais endurecido do que nunca, pelo pequeno diferencial que faria aquele dia.

Daria? Não daria?, estava em tempo de ainda recuar da ideia.

Perséfone estava numa sala escura, correndo sem sair do lugar, sem jamais alcançar seu objetivo, por mais empenho que colocasse em sua busca. A sua frente, seus irmãos, seu pai, sua mãe. Todos caminhando, sem qualquer preocupação. E ela...ela estava pra trás, excluída.

- Artie... Dio... Apollo... Mamãe... - chamava enquanto forçava suas perninhas ao máximo, sem nunca se aproximar deles. - Estou... aqui... - esticou os braços para diminuir a distancia, mas...nada...

Jamais chegaria a eles...

- Hora de comer, Perséfone...

Parou de correr e olhou em volta. Oi? Da onde vinha aquela voz?

Ecoou mais uma vez. - Hora de comer, Perséfone...

Não pertencia a nenhum de seus irmãos, tinha certeza. Então, de quem seria?

- Hora de comer, Perséfone...

Hades, era de Hades.

A constatação disso lhe trouxe de volta a realidade. Abriu os olhos e se viu presa no mesmo quarto de sempre. Mesmo teto, mesmas roupas, mesmo ritual de tortura. Parecia que estava ali a mais tempo que toda a sua eternidade. Talvez a falta de comida ou bebida, distorcesse sua passagem de tempo, mas aquilo estava sendo a semana mais longa de sua vida.

- Não tenho fome Hades. - rolou para o lado. Não importava o quanto repetisse isso, ele sempre insistia que comesse.

- Porque não come? Só um pouco? - perguntou um dos tantos familiares, preocupado com seu irmão.

- Não consigo. - suspirou o outro, virando para o lado, rejeitando a comida expressivamente.

- Vai morrer de tristeza desse jeito!

A resposta foi apenas um dar de ombros. Ele pouco se importava.

As tantas experiências vistas em milênios pelo espelho lhe davam um pouco de saber sobre algumas coisas. Talvez não as compreendesse, mas sabia que era possível. Sua Perséfone estava definhando de tristeza e se não a convencesse logo a estar feliz, ficaria naquele estado até morrer de inanição. Era isso que seus olhos constatavam, ali, tão de perto. Mais do que feliz, também precisava, em pouco tempo, convencê-la a aceitá-lo.

- Eu sei que não tem. - sussurrou inexpressivo, após algum tempo a fala dela, como se apenas a analisasse e retornou a ficar ereto, sentado na cama. - Ainda assim, vim lhe trazer um... presente...

De dentro do manto, retirou o presente que tinha embrulhado não fazia muitos minutos. Sentia leves tremores, imperceptíveis a olho nu, em seu corpo, enquanto o colorido bonito do pacote deslizava para fora de seu manto negro. Colocou o pacote retangular sobre o próprio colo, sem encará-la. Suas cores chamativas e vivas eram como um farol no quarto lúgubre e de cores que variavam entre o negro e o acinzentado claro.

Não sabia como entregá-lo. Tudo era mais fácil quando não estava tentando obter algo que não era acostumado a se interessar. Sempre se sentia confuso e estranho. Estava começando a irritá-lo, não gostava daquela sensação de impotência, de não saber lidar com a situação. Ele sempre sabia o que fazer em relação a tudo.

- Pegue. - disse ligeiramente ríspido, depositando-o ao lado dela e se levantando da cama, num começo de irritação que não queria demonstrar. Pegou a bandeja e saiu do quarto em instantes, sem insistir para que comesse, sem verificar os ferimentos, sem fazer quase nada do que sempre fazia. Maldição! Estava perdendo a cabeça!

- Eu sei que não tem. - sussurrou inexpressivo, após algum tempo, como se apenas a analisasse e retornou a ficar ereto, sentado na cama. Perséfone se virou entre os travesseiros para lhe olhar melhor. Com suas muitas horas de tédio, olhar as mudanças de humor de Hades tinha se tornado seu novo hobby.- Ainda assim, vim lhe trazer um... presente...

-...presente...? - quão surpreendente ele podia ser?

De dentro do manto, ele retirou o presente do qual tinha falado e colocou o pacote retangular sobre o próprio colo, sem encará-la. Suas cores chamativas e vivas eram como um farol no quarto lúgubre e de cores que variavam entre o negro e o acinzentado claro. Perséfone se esforçou para se sentar e olhou o pacote colorido no colo dele.

- É pra mim...? - ele acenou com a cabeça e ela não conteve um sorriso que provavelmente ele sequer viu. Preocupado demais em manter o rosto virado para longe dela. Ela se esticou sobre a cama, tentando alcançá-lo.

- Pegue. - disse ligeiramente ríspido, depositando-o ao lado dela antes que conseguisse alcançá-lo e se levantando da cama. Pegou a bandeja e saiu do quarto em instantes, sem insistir para que comesse, sem verificar os ferimentos, sem fazer quase nada do que sempre fazia. O que a deixou extremamente deslocada.

Não o entendia, de jeito algum. Uma hora era gentil, lhe trazendo um presente. E logo em seguida fechava a cara, bravo, como se ela tivesse feito algo errado. Suspirou triste, percebendo que ia ficar mais um dia sem comida, por escolha dela ou não.

Curiosa, pegou o pequeno pacote retangular e se sentou de pernas cruzadas. O que seria? Mordeu os lábios aciosa, mas desfez o embrulho com todo o cuidado possível pelas suas mãos tremulas. Com delicadeza, o dobrou e o colocou na cabeceira da cama, para admirá-lo quando sentisse falta das cores da superfície. E se virou para o invólucro de vidro retangular que tinha entre os dedos.

Aquilo era...uma flor?

Seus olhos brilharam de empolgação.

Era uma rosa negra. Viva...totalmente e inteiramente viva. Como nada ali além de Hades e ela.

Então alguma coisa poderia crescer ali? No submundo? Algo tão lindo e delicado como uma rosa? - passou os dedos delicadamente por cima do vidro, admirada.

Pelo que sabia sobre flores, a rosa negra, originalmente, poderia representar um coração partido, ou simplesmente, um profundo amor.

Ficou encarando o pequeno retângulo de vidro. Até se dar conta de que estava corada e sorrindo diante das opções. E com certeza não estaria sorrindo se imaginasse que tinha partido o coração de alguém.

Se censurou em voz alta, dizendo que só estava feliz por ter alguma flor em suas mãos depois de tanto tempo e colocou o seu novo presente em cima da cabeceira do lado da sua cama, de modo que pudesse observá-lo enquanto estivesse deitada.

Devagar, repousou a cabeça dolorida de volta no travesseiro, com os olhos fixos na Rosa Negra.

Tão sozinha... - não conseguiu seguir com os pensamentos, exausta, acabou dormindo de novo e ao contrario dos outros dias, dormiu com um discreto sorriso no rosto, admirando seu pequeno pedacinho do submundo.

Mais três dias de recusas. Ainda que as expressões dela retornaram a ser serenas durante o sono - algumas vezes poderia jurar que ela até mesmo sorria -, não comia de maneira alguma. O que precisaria fazer? Tinha alguma noção de que seu presente fora aceito. Sua Rosa Negra permanecia repousada sobre a cabeceira da mesa e, logo atrás, o embrulho colorido e cheio de flores. Desde isso, ela nunca mais vertera lágrimas em seu travesseiro.

Mas ela não comia!, pensava com indignação. Talvez não tivesse produzido felicidade o suficiente, era isso?

Só havia lhe sobrado uma opção daquela vez. Tinha terminado no dia anterior, durante a noite... se, mesmo depois daquilo, ela não comesse...

Um arrepio lhe passou. Não queria pensar naquilo. Iria comer, com certeza.

Materializou-se no quarto, com um pequeno diferencial. Daquela vez, utilizava o Elmo da Invisibilidade, presente ganho durante a guerra para terem o controle do Olimpo. Aproximou-se e ela mantinha aquele ar sereno e... quase feliz. Também notou que andara a ter a mania de sempre deitar-se tão perto da beirada que temia ainda ela cair uma hora e normalmente fazia questão de colocá-la um pouco mais para o centro da cama e ajeitá-la. A fraqueza parecia ter feito com que tivesse um sono pesado e nunca acordou nestes momentos.

Respirou fundo, ganhando coragem. Colocou a bandeja próxima dela, sustentada por sombras, já que a cabeceira agora era ocupada por um objeto que, julgava, devia ser importante para ela. Ao menos, em seu próprio quarto, tinha depositado algo importante em sua cabeceira e odiaria profundamente se alguém tocasse naquilo.

Devaneios!, censurou-se, ajoelhando e encarando as expressões serenas. Por alguns momentos analisou-as num misto de preocupação, fascínio e devoção. Logo, porém, depositou sobre a cabeceira um pequeno envelope com uma carta dentro. Logo depois, voltou-se de mansinho para perto do rosto dela e sussurrou:

- Hora de acordar, Perséfone... - e, logo após, assoprou em seu ouvido com leveza.

Agora era ver o que ocorreria.

- Hora de acordar, Perséfone... - sentiu uma leve brisa em seu ouvido e resmungou algo enquanto rolava entre os lençóis.

-Hades...?-resmungou baixinho antes de abrir os olhos. Fazia pelo menos dois dias que ele não vinha lhe trazer o que comer. Mas sempre que acordava, jurava ter escutado a voz dele. Talvez estivesse desenvolvendo algum tipo de associação entre a voz dele e o fim do sono.

Abriu os olhos e olhou em volta, a procura do dono da voz. Nada. Ninguém. Estava sozinha. De novo...Suspirou resignada ao perceber que era tudo coisa da sua cabeça.

Com cuidado se sentou e olhou a delicada rosa negra que mantinha na cabeceira de sua cama, o que a fez sorrir. Se inclinou para perto dela sussurrando:

-Bom dia pequenino, como dormiu essa noite? - mas tinha algo estranho, algo do lado do seu novo companheiro de quarto. Um envelope? Se inclinou para frente e o pegou. Com cuidado, desfez o lacre e tirou o pergaminho de dentro.

"Siga as pétalas." - era tudo o que dizia.

Perséfone franziu o cenho. Pétalas? Que pétalas? Não tinha essas coisas no submundo.

Olhou sua rosa negra e ela não parecia desfalcada. Então, olhou em volta no quarto. Nada no chão, nem nas paredes, nada na cama ou na comoda, nada na...espere! A porta estava...aberta?

Se levantou devagar, incrédula, como se tudo pudesse simplesmente se desmanchar revelando que era uma nova alucinação de sua cabeça. Com cuidado colocou os pés para fora da cama e cambaleou até adquirir um pouco de equilíbrio sobre suas novas pernas. Olhou para baixo e percebeu que seu joelhos se encontravam antes que suas coxas, o que mostrava quão magra estava, seu pés pareciam apenas ossos e sua barriga estava concava. Puxou a camisola para baixo, de modo que lhe cobriu até os tornozelos. Hades tinha deixado essa camisola sobre sua cama alguns dias atras, sem ao menos avisá-la a respeito do novo presente. Era branca e cheias de fitas, como o vestido de uma boneca de época. Exatamente como usava no Olimpo. Como sua mãe, Demeter, sempre a vestira. Só não tinha ideia de como ele descobrira aquilo.

Aos poucos, tanto pelo receio, quanto pela falta de força, foi se arrastando até a porta, se apoiando nos moveis que encontrava no caminho.

Quando chegou a porta, apoiou no batente e olhou em volta. Não tinha ninguém por perto. Poderia tentar uma nova fuga. Mordeu os lábios, tentada e olhou para o chão. Ali, num caminho para a esquerda de onde estava, tinha uma trilha de pétalas de rosas brancas. Queria muito fugir. Mas queria mais ainda ver onde aquilo iria levar.

Na sua própria velocidade, que não era muita, se virou para a esquerda, e com a mão apoiada na parede colocou o pé sobre as pétalas.

Num reconhecimento, as pétalas rodearam seus tornozelos e voltaram a se deitar no chão, como para forrar o seu caminho. Foi assim em todos os passos, as pétalas levantavam e se deitavam e isso fez seu coração borbulhar de alegria. Ela amava as flores e era reciproco, qualquer um poderia notar.

Em certo momento, andava apenas para brincar com as flores, se esquecendo de para onde seguia.

-Também sinto a falta de vocês...-disse rindo baixinho, com os olhos fixos nos próprios tornozelos. Foi então que as ultimas pétalas se deitaram no chão. Não tinha mais nenhuma a frente e Perséfone sentiu o coração se apertar. Sua brincadeira...sua felicidade...tinha chegado ao fim. Suspirou triste e aos poucos, levantou a cabeça para voltar no seu caminho, era melhor voltar pro quarto ou quem sabe tentar fugir agora que estava livre. Mas ao levantar os olhos...perdeu o folego.

- Uau!

Silenciosamente, afastou-se da cama assim que a acordou. Era a primeira vez que permanecia no quarto após ela acordar e a observou com expectativa.

- Hades...? - ela o chamou aos sussurros, abrindo os olhos, procurando-o.

Obviamente, não o encontrou, ali, escondido sob o Elmo da Invisibilidade. Seu semblante se mostrou entristecido, enquanto um suspiro resignado era solto de seus lábios finos e, naquele momento, tão ressequidos pela falta de alimentação adequada.

O que seria aquilo?, perguntou-se sem entender. Nunca a vira feliz ou alegre em sua presença. Tudo o que vira até aquele dia era súplica, raiva e repulsa e não fazia o menor sentido dela suspirar entristecida pela sua falta. Talvez alguma outra coisa passasse em seus pensamentos no momento, alguma coisa relacionada aos irmãos ou a um sonho recente.

Quando ela sentou-se na cama, usando as roupas que tinha lhe entregue fazia pouquíssimo dias - até porque, o manto negro não caía bem em seu corpo e só piorava a visão dela -, a primeira reação foi olhar o Príncipe Negro que repousava sobre a cabeceira.

Prendeu a respiração.

- Bom dia, pequenino, como dormiu essa noite? - ela perguntou já com um mínimo sorriso em seus lábios. Desapareceu, porém, pouco depois quando olhou o pequeno envelope com um bilhete pequenino dentro.

Ela olhou em volta, logo após lê-lo, obviamente a procura do que lhe pedia no bilhete e foi quando finalmente percebeu que tinha deixado a porta aberta aquele dia. Com esforço e incredulidade, ela fixou os olhos na porta aberta e caminhou com a ajuda de móveis até lá e, assim que apoiou-se sobre o batente, olhou para o corredor deserto.

Pro chão, Perséfone, olhe para o chão, fazia um incentivo inútil e não-audível do que ela precisava fazer. Por um momento, ela continuou no mesmo lugar meio pensativa. Até que notou a pequena trilha de pétalas brancas que fez com tanto esmero no dia anterior.

Com um passinho vacilante, ela colocou os pés descalços sobre a trilha de pétalas e elas esvoaçaram ao seu redor, pouco antes de retornar ao chão. Como se tivesse uma energia renovada para prosseguir, ela seguiu por todo o caminho, apoiando na parede até o fim. Por vários instantes teve ímpetos de ajudá-la, pois seu estado era extremamente frágil e delicado e só conseguiu se acalmar com tanto esforço desprendido quando chegou ao fim da trilha, pouco antes de chegar a porta aberta do jardim que construíra com tanto esmero.

Olhe para cima, Perséfone, fez novo incentivo completamente inútil para não ver a tristeza de seu rosto ao ver a trilha acabar sem mais nem menos. Foram momentos tétricos, enquanto a observava erguer vagarosamente os olhos das pétalas do chão, o qual brincou por todo o trajeto, para o novo presente que tinha se esforçado tanto para ser o mais perfeito possível.

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A Sombra lhe acomodou na cama com a delicadeza de sempre, como se ela fosse um pequeno objeto de cristal, e Perséfone fez força para se manter sentada, apoiada contra a cabeceira. Largou a cabeça para trás, com o rosto contorcido numa careta. Seu estomago decidira se rebelar contra a pouca comida que havia recebido. Sua barriga doía tanto que colocou os braços em volta da cintura, e levantou os joelhos, numa tentativa infantil de reprimir a dor.

- Ei! - chamou atenção da Sombra e se encolheu ainda mais de dor - Escute, será que não consegue algo pra eu comer? - já estava condenada mesmo, não é? Uma dentada tinha selado seu destino. Certo que a eternidade tinha valido a pena só pra ver a cara de Hades quando mordeu a romã, mas agora seu estomago protestava por mais.

A Sombra desapareceu antes mesmo de terminar a frase, então forçou-se a acalmar-se enquanto ela não voltava e agradeceu a todos os Deuses por ele ser rápido como um raio e saber de cor todos os seus pratos favoritos.

- Oh Deuses, obrigada! - se ajeitou na cama enquanto ela se aproximava com calma. Sua boca salivava de ansiedade e sua barriga rugia tão alto que era capaz dos Olimpianos a usarem como radar para encontrá-la.

Materializou-se no quarto dela em silêncio, no exato momento que sua Sombra Viva colocava a bandeja de comida sobre o colo dela e se afastava para o lado, como um mascote fiel.

Aproximou-se de mansinho, apenas observando Perséfone vidrada sobre a comida e, só não teria começado logo a comer, pois parecia indecisa por onde começar. Com um movimento de mão, sua Sombra Viva desaparecera e prostrou-se em seu lugar, analisando-a com cuidado e carinho. Ela parecia tão absorta na escolha que não notou a troca que se fizera ao seu lado.

Como se aborrecida por estar pensando demais e comendo de menos, decidiu começar, tentando erguer o garfo e viu quando rugas de esforço apareceram em sua testa, numa concentração sem tamanho para mantê-lo parado na mão que tremia pelo esforço além do limite de suas poucas forças. Ainda teimosa, tentou pegar alguma coisa, mas mal conseguia fazer o garfo perfurar a carne, mesmo com as duas mãos e isso parecia estar aborrecendo-a ainda mais.

Dali a pouco ela teria de desistir e pedir ajuda. Era só esperar.

Droga!! Isso era muito mais difícil do que parecia. - franziu a testa.

Tinha certeza que a cena toda deveria estar bem ridícula. Mas já estava ficando brava por não conseguir pegar nem mesmo os pedaços de bife, já cortados, de seu prato.

Bateu os talheres com força e o tintilar da louça ecoou pelo quarto inteiro. Praguejou baixinho por diversas vezes e abusou de uma coleção de xingamentos que nunca tinha usado antes. Nunca imaginou que teria tanta dificuldade em algo tão simples, tão básico como comer. E porque diabos a sua Sombra ainda não tinha vindo ajudá-la?

- Sombra...por favor...- levantou os olhos e perdeu a voz.

Hades estava logo ao lado dela. Paralisando. A observando como se fosse a própria sombra. E por um momento não soube o que fazer...ou dizer. Não esperava que ele estivesse ali. Não tão depressa, quer dizer, sabia que ele iria aparecer alguma hora, mas não no segundo seguinte em que pisasse em seu quarto.

-H-H-Hades...- baixou os olhos sentindo o rosto corar numa velocidade impressionante. Olhou para o outro lado a procura de sua Sombra, mas ela já não estava mais ali, tinha desaparecido, provavelmente dispensada por Hades.

Sentiu seu rosto cada vez mais quente, seu constrangimento lhe esquentando a pele. E manteve os olhos entretidos nos seus próprios dedos, ainda tremolos pelo esforço de manusear os talheres.

Sabia que Hades viria atrás dela uma hora ou outra. Só não esperava que fosse tão depressa.

Estaria ali para interrogá-la? Com certeza que sim! As expressões dele continuavam tão enigmáticas quanto sempre estiveram. Não tinha ideia se tinha gostado ou não da sua travessura, nem se tinha percebido que tinha feito aquilo apenas para chamar sua atenção. Se seria gentil ou não era uma grande incógnita. Bem provável que acabasse de castigo de novo e dessa vez pela eternidade. Talvez devesse pensar melhor em seus atos da próxima vez. Afinal, não sairia dali tão cedo.

Mordeu os lábios, nervosa. Mas tinha valido a pena pela expressão de surpresa de Hades quando ela mordeu a romã. - pensou divertida.

Pegou de novos os talheres e mexeu o garfo pela comida, morrendo de fome, mas completamente constrangida com a presença dele.

- S-sabe...e-eu preciso... de ajuda... - falou baixinho, sem jeito, e a essa altura, extremamente corada. - E-eu ia pedir... pra sua sombra...mas, ela...você sabe...pof! - faz um gesto bobo com as mãos para dizer que ela tinha desaparecido. Não queria parecer dependente, mas no exato momento, não estava em condições de escolher muito.

Observou cada reação dela com interesse, enquanto permanecia parado. Sua desenvoltura para falar com sua Sombra, depois a paralisação seguida de um rosto que começava a se avermelhar.

A infantilidade de seus movimentos lhe fascinavam e a simplicidade de sua fala, com seus trejeitos de nervosismo, eram hipnotizantes. Pela primeira vez entendia aquela estranha mania de quererem abraçar as pessoas. Naquele momento, sentia uma vontade imensa de depositá-la entre seus braços e a protegê-la como um tesouro inestimável e frágil.

Porém, seu auto-controle não permitiu tal demonstração de afeto, apenas seus olhos brilharam, novamente transbordando sua devoção que nutria por sua amada Perséfone. Sentou-se na beirada da cama, mantendo-se de frente a ela que tinha os olhos baixos para a bandeja de comida.

- Eu vi. - respondeu objetivo, desviando os olhos de seu rosto avermelhado para a comida logo a frente. Por um curto momento, houve silêncio, até que foi quebrado pelo estomago dela a roncar.

E-eu ia pedir... pra sua sombra...mas, ela...você sabe...pof!, sua mente repetiu a frase dela.

- Prefere que ela a ajude? - sentiu um leve temor se ela desse uma afirmativa.

Então, porque raios perguntou se teme a resposta?, pensou logo depois, contraindo uma sobrancelha. Ele fazia atos estranhos e desconjuntados perto dela, algo que sua racionalidade não via qualquer lógica. Se ele queria fazer, ele faria, com concordância ou não.

Ainda assim, julgava importante a opinião dela. Porque!?

- Prefere que ela a ajude?

Levantou os olhos pra ele, assustada, com medo que ele fosse embora.

-Ah não, não! - balançou a cabeça mas logo se arrependeu. Chacoalhar algo já dolorido não era uma boa ideia. Fez uma careta mas continuou. - Por favor...- segurou sua mão e levantou os olhos para ele, dengosa. - Se não for incomodar, você poderia...você sabe...me ajudar? - corou com o pedido, mas não desviou os olhos, com medo que ele desaparecesse tão rápido quanto a sua sombra.

Era a oportunidade de voltar a ter a atenção dele. De não se sentir sozinha e abandonada. Queria seus mimos de volta e se comer a romã não tinha resolvido isso, temia que tinha jogado sua eternidade no lixo.

- Por favor... - suas pequenas mãos lhe seguraram, chamando a atenção de seus olhos. Uma batida em falso em seu peito foi sentida logo após. - Se não for incomodar, você poderia... você sabe... me ajudar?

O alívio tomou conta de seu corpo instantaneamente e seu cérebro voltou a raciocinar como deveria. Claro que ela iria aceitar sua ajuda, afinal, andara a persegui-lo com persistência pouco tempo após decidir tentar ignorar sua presença em seu castelo - inutilmente - e não se condenaria a permanecer periodicamente ali por nada, não era? Apesar de que os sentimentos nem sempre serem tão lógicos e, muitas vezes, imprevisíveis. Principalmente esse tal de amor. Conseguia manipular a paixão, o ódio, a atração... mas nunca aquilo. Nunca entendera e nunca entenderia aquele sentimento confuso, mesmo agora que achava possuí-lo.

- No que desejar, pequena. - respondeu, apertando carinhosamente sua mão como num sinal de concordância. Maldição, faria tudo para ter seu jeito infantil, sua amabilidade inocente. Qualquer coisa - O que você quer primeiro? - perguntou, enquanto pegava os talheres repousados na bandeja.

- No que desejar, pequena. - suspirou aliviada. Ele ficaria. - O que você quer primeiro? - soltou sua mão e baixou os olhos para o prato, numa duvida boba. Seu corpo precisava de qualquer coisa, e rápido. Mas ela hesitava no que levar a boca primeiro. Qual seria o primeiro sabor que sentiria depois de tanto tempo em jejum?

Ali, na bandeja, tinha pelo menos um de cada um dos seus pratos favoritos. Todos bonitos, vistosos, um prato cheio para os olhos e possivelmente para o paladar. Lambeu os lábios e passou os olhos demoradamente por cada item, ouvindo seu estomago protestar diante da demora. Parou no canto mais afastado na bandeja.

No canto, estava a romã, com apenas uma mordida, jogada, afastado dos outros pratos como se estivesse ali por acaso.

Sentiu a boca salivar ainda mais. Não teve a oportunidade de experimentá-la direito antes. Na sala de jantar, deu apenas uma mordida e se apressou em sair antes que Hades surtasse ou algo do tipo. E como não tinha nada parecido com uma romã no Olimpo, estava curiosa para degustá-la com mais calma.

- Ali. - apontou pra fruta - Posso comer mais um pedaço dela? - perguntou, encarando Hades com o ar infantil.

- Ali. - ela indicou o cantinho da bandeja, onde normalmente depositava a Romã Encantada. - Posso comer mais um pedaço dela?

Seus olhos lhe encaravam numa curiosidade infantil e numa espera... boba...? Voltou os olhos para a bandeja, intrigado no motivo dela ter reparado nela. Normalmente, ele precisava dar ênfase a sua existência, oferecendo-a nos fins das refeições para que ela a notasse.

Pegou-a do recipiente onde normalmente a depositava, sempre solitária. Observou o símbolo de sua Maldição, agora maculado por uma mordida, durante um certo tempo.

Aquela a quem oferecer isso, será tudo para você e você para ela. Será a quem entregará seu coração, ressoou a voz de Hera em seus pensamentos, fazendo questão de depositá-la em uma das mãos dela.

- Ela foi sempre sua. Não tem porque pedir permissão por algo que é seu. - falou baixo, quase cúmplice, enquanto fazia os dedos dela se fecharem sobre a Romã.

- Ela foi sempre sua. Não tem porque pedir permissão por algo que é seu. - sentiu o peso da fruta entre seus dedos e se perguntou se ela deveria ser mesmo pesada daquele jeito ou se seus braços estavam fracos demais para aguentá-la.

Com esforço, levou-a até a boca e deu uma nova mordida, fechando os olhos para aprecia-la melhor. Soltou um gemidinho em êxtase, se deliciando com o novo sabor. Não era doce como as frutas que conhecia, mas era de um azedinho viciante. Mordeu novamente, dessa vez com mais força, mais vontade, mais fome. Seu estomago se contorcia em protesto, pedindo cada vez mais. Depois de tanto tempo sem nada, foi como liberar um monstrinho faminto, que pedia cada vez mais. A fruta sumiu de sua mão em um piscar de olhos e logo ela procurava por algo mais.

-Mais...- lambeu os lábios e se inclinou pra frente pra olhar melhor o que tinha a sua disposição. - Posso comer isso? - apontou pra vasilha cheia de ambrosia. - Posso, Hades? - levantou os olhos pra ele atrás de alguma aprovação. Já não tinha medo de ser castigada e sua fome guiaria seus atos por enquanto.

Observou-a levar a Romã a boca com certo esforço para começar a comer. Assim que os dentes penetraram, viu-a fechar os olhos, como se sentisse um prazer imenso no ato e, para um pouco de descompasso de seu coração, soltar um gemido que, com sua mente acostumada a tantas mulheres caindo em seus encantos, poderia interpretar de uma forma não muito pura.

Porém, nos próximos instantes, ela devorou a fruta que sumiu num relâmpago e seu pequeno devaneio desapareceu. Para um pouco de seu espanto e, se seus cálculos frios estivessem corretos, aquela bandeja não duraria muito tempo cheia. Se com os braços fracos ela tinha conseguido sumir com uma fruta em um piscar de olhos, não imaginava o estrago que ela faria se tivesse forças para fazer as coisas sozinha.

Pegou a Ambrosia e a colher, aproximando dela. Não era de muito falar, apesar de tudo... diferente do que muitos pensavam, preferia demonstrar suas respostas através de atos. Perséfone era uma das poucas, não se sabia para o azar ou sorte dela, que demonstrou e demonstrava seu verdadeiro eu, independente se ela visse tudo ou não. Se interpretasse tudo certo ou não. Apenas tentava dar o melhor de si para agradá-la, porque era o que queria. Queria o amor, a atenção e o carinho exclusivo dela e o reivindicaria. Do seu jeito, do seu modo.

- Abra. - pareceu mais uma ordem do que um pedido, enquanto já equilibrava uma porção do prato sobre a colher e a aproximava.

- Abra. - Ele usava seu tom de voz 'mandão', não que se importasse com que tom ele usasse, com a fome que estava, obedeceria de bom grado a qualquer um deles.

Tinha os olhos fixos na colher, olhando a ambrosia como se fosse a coisa mais rara e deliciosa de todo o planete. Oh Deuses, porque estava demorando tanto? Se mexeu nervosa, no mesmo lugar, tentando conter a ansiedade. O mundo parecia em câmera lenta quando mais precisava que ele se acelerasse.

Vamos...vamos....

Desejou com pressa, mordendo os lábios, na esperança que seus protestos internos fizessem o mundo girar mais rápido.

Ah, que se dane!

Se inclinou pra frente, depressa e abocanhou a colher no meio do caminho, soltando um gemidinho satisfeito ao sentir a comida dos deuses dissolver-se em sua língua.

- Oh deuses...-disse num sussurro falho ao sentir seu corpo inteiro tremer de satisfação.

- Perséfone. - falou em um tom reprovativo, quando ela se inclinou para a frente, antes de chegar a boca dela, para sumir com o conteúdo da colher tão rápido quanto a fruta.

Porém, pareceu que ela não havia notado, absorta demais em saborear o que tinha acabado de comer, soltando outras interjeições de satisfação e prazer. Suspirou, balançando a cabeça de um lado para o outro com toda aquela cena.

Tudo que recebeu foi um 'riso' contido de seus lábios, disfarçado em tosse, um leve corar de seu rosto e um tímido sorriso. Seus belos olhos demonstravam aquele brilho vivo que lhe encantava e era como ser invadido por um calor anormal e aconchegante. Sentia que sua devoção seria infinita, enquanto pudesse encarar aquele brilho e sentir sua vida entre os dedos.

Retornou a lhe dar a comida na boca, ainda com ela a fazer algumas travessuras e gracinhas, principalmente quando começava a se sentir satisfeita.

Ela era tudo para ele... e, mesmo que a recíproca não fosse verdadeira, por alguma razão aquela pequena parte já lhe fazia completo.

Quando Perséfone terminou com a bandeja, os olhos dela estavam miúdos de sono. Com as sombras, deixou a bandeja a 'flutuar' ao lado da cama e deixar um espaço livre para se aproximar.

- Hora de descansar. - falou baixo, passando a mão pelos cabelos desgrenhados e descuidados. Ficou levemente aborrecido com isso, não a queria mal-trapilha. Era o seu tesouro e precisava cuidar dele com devoção.

Ajeitou os travesseiros e as cobertas por seu corpo, ainda enfraquecido, apagando as luzes logo depois. Saiu do aposento, desmaterializando-se para fazer suas tarefas do dia, com tranquilidade.

Perséfone estava bem.

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Guiou-a com paciência pelos corredores, a cada passo, ela mais e mais sonolenta. Quando chegou ao aposento, já escorriam lágrimas de sono por seu rosto o que ela ficava limpando quase o tempo todo e encardindo seu belo rosto numa meleca terrível de água e pó. Todo seu trabalho ao léu...

- Para o banho e depois, cama. - não havia nenhum toque de delicadeza em sua voz controlada. Pareciam verdadeiros comandos para ela seguir, sem protestos ou reclamações. Direcionou-a para o banheiro, ouvindo-a cheia de manha que não queria ir, mas não ia lhe dar escolhas, quando a colocou dentro do banheiro e lhe conjurou algumas roupas para usar depois do banho. - Banho, depois, cama. - reafirmou, logo se retirando-se do aposento.

- Para o banho e depois, cama. - Ele repetiu uma... duas vezes. Resmungou mais por força do habito do que por resistência de verdade. Afinal, banho e cama pareciam um bom plano.

Bocejou enquanto Hades falava qualquer coisa que não prestou atenção e quando abriu os olhos ele já não estava no banheiro. Apenas ela, com uma muda de roupas limpas nas mãos.

Reprimiu outro bocejo. Droga, estava cansada.

Virou nos calcanhares e abriu a porta em direção ao quarto. Só precisava pegar uma fita de cabelo para usar depois do banho e voltaria pro banheiro para acabar logo com isso.

Entrou no quarto e se sentou na cama.

Grande erro.

Passou a mão demoradamente sobre a colcha que cobria a cama, encarando as cobertas e os travesseiros por um momento. Eles pareciam lhe fazer um convite silencioso...

...o qual Perséfone não demorou em aceitar.

- Só cinco minutinhos...-resmungou pra si mesma - ...depois...banho...- afundou o rosto em um dos travesseiros e fechou os olhos. - ...só cinco...minutinhos...- e apagou.